sexta-feira, novembro 24, 2006

Rómulo Gedeão

Conheci António Gedeão como Rómulo de Carvalho. Nos corredores e pátios do Liceu de Pedro Nunes a sua figura austera impunha respeito, mas também o seu por vezes enigmático sorriso irradiava simpatia à sua volta. Era um dos muitos Senhores que nessa altura ensinavam no Liceu e que moldaram indelevelmente a formação de quem teve a sorte de ser seu aluno. Morando, tal como ele, em Campo de Ourique, muitas vezes os nossos caminhos para o Liceu se cruzaram. Não foi com ele que aprendi Química, mas talvez ele tenha sido decisivo para o caminho profissional que depois tomei quando, em consequência do interrogatório que me fez em plena prova oral do exame do então 7.º ano – ainda me lembro, algo à volta das fórmulas do ácido fórmico e do ácido acético - apanhei o primeiro chumbo da minha vida e o “convite” para repetir a disciplina em Outubro. No fundo foi bom porque isso me permitiu ter uma nota a Físico-Químicas que me dispensou do então exame de aptidão e entrar directamente no Técnico.
Encontrei António Gedeão tempos depois nas páginas de um volume da Lírica Portuguesa que a Portugália editava. Fascinou-me a linguagem técnica e científica aplicada nos poemas:
Carpelos e estames de aço,
de longas e brunidas hastes,
articulam-se em abraço.
Rasgam os ventres e o espaço
escavadoras e guindastes.
(“Ode Metálica”, Teatro do Mundo, 1956)

Apreciei o ritmo de muitas das suas obras:
Álvaro Góis,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Cantanhede
pedreiros de profissão,
de sombrias cataduras,
como bisontes lendários,
modelam ternas figuras
na brutidão dos calcários
.
(“Poema da Pedra Lioz”, Teatro do Mundo, 1956)

E sobretudo a crença na liberdade e na afirmação de cada um, muito sensível para quem andava na casa dos vinte nos anos sessenta:
Venho da terra assombrada
do ventre da minha mãe,
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.
Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença ! Com licença !
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

(“Fala do Homem Nascido”, Teatro do Mundo, 1956)

Não me admirei por isso quando os trovadores começaram a cantar os seus poemas e passámos a ouvir a “Lágrima de Preta”, a “Calçada de Carriche”, o “Poema da Malta das Naus” ou a “Pedra Filosofal”.
A António Gedeão poeta / Rómulo de Carvalho professor, no centenário do seu nascimento, um agradecimento de alguém que sente que ele/eles lhe disseram alguma coisa na vida.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Bonita e merecida homenagem!

sábado, novembro 25, 2006 12:11:00 da manhã  
Blogger JPF said...

Obrigado, Laura.
Deve ter conseguido fazer o comentário mais rápido a um post. Eu ainda o estava a emendar e alindar quando o comentário surgiu.

sábado, novembro 25, 2006 1:13:00 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home